CALVÁRIO NOS CANAVIAIS
Se é certo que a história do trabalho humano, excetuados alguns lampejos de humanidade na sociedade repressora, é uma história de terror, [01] o processo laboral e os padrões de desgaste e reprodução da força de trabalho empregados no corte da cana-de-açúcar são ainda mais assustadores.
Não bastasse a sujeição do cortador de cana-de-açúcar a toda sorte de intempéries (calor, risco de acidentes com foices, facões e animais peçonhentos, intoxicações por agrotóxicos, entre outros), a atividade submete-o a excessivas jornadas e a ritmos acelerados.
Tais trabalhadores se expõem, diariamente, a cargas laborais físicas, químicas, biológicas e biopsíquicas, que se traduzem em uma série de doenças, traumas ou acidentes a elas relacionadas, isto quando não desencadeiam o óbito.
Conforme minuciosa pesquisa de campo realizada por Neiry Primo Alessi e Vera Lucia Navarro, [02] a rotina extenuante do cortador de cana não se limita ao espaço tempo da produção, tendo ela início com a preparação para a jornada de trabalho, estendendo-se até após o labor, com a limpeza da casa, preparação da refeição, cuidados com o vestuário pessoal e da família, higiene pessoal etc., quando só então o trabalhador terá o descanso para repor as energias até o reinício da próxima jornada.
Inúmeras são as condições adversas do trabalho, a saber:
(I) não fornecimento dos equipamentos de proteção individual, demandando que o trabalhador os improvise, ou, quando disponibilizados, sua inadequação, vez que confeccionados, em geral, com material inadequado ou que não apresentam variáveis de tamanho, acabando por atrapalhar os movimentos necessários na operação de corte da cana e prejudicando a produtividade do trabalho;
(II) transporte em caminhões e ônibus inapropriados, mal conservados e conduzidos por motoristas inexperientes, ou mesmo inabilitados, que trafegam acima de sua capacidade de transporte, com trabalhadores junto aos instrumentos cortantes, expondo-os a perigo;
(III) ambiente de trabalho precário e insalubre, com elevadas temperaturas (em decorrência não só da ação solar, mas também da prática da queima da cana antes de seu corte) e exposição à poeira e à fuligem da cana queimada. Ainda, a ausência de instalações sanitárias, refeitórios e locais adequados de estocagem e condicionamento de marmitas e garrafas de água e café, além da inexistência de veículos e equipamentos de primeiros socorros; e
(IV) desrespeito aos direitos trabalhistas, que se dá com a não observância do intervalo para refeição e das pausas para relaxamento e alongamento, pagamento incorreto das horas in itinere, não discriminação no atestado de saúde ocupacional dos riscos da atividade dos rurícolas, intimidação e práticas anti-sindicais, dentre outros.
ALTA PRODUTIVIDADE, DOENÇAS E MORTICÍNIO
Em que pese seja ainda insuficiente, é possível vislumbrar nas últimas décadas uma crescente preocupação das Procuradorias e Delegacias Regionais do Trabalho, juntamente com movimentos sociais e sindicatos, com a fiscalização das atividades desenvolvidas nas lavouras. Não é por acaso.
No período de 2004 a 2007, ocorreram 21 mortes de trabalhadores rurais nos canaviais do interior paulista, sendo que em novembro de 2007, 30 cortadores de cana-de-açúcar foram hospitalizados após passarem mal durante o trabalho numa usina do município de Ibirarema/SP, cuja causa foi atribuída ao excesso de trabalho em alta temperatura. [03]
No ano anterior, um cortador de cana faleceu durante o trabalho, tendo o Ministério Público do Trabalho concluído que ele havia laborado durante 70 dias sem folga, tendo cortado, no dia anterior ao óbito, 17,4 toneladas de cana. [04]
Para entender as causas deste quadro é necessário investigar as mudanças do processo de trabalho dos bóias-frias na esteira das transformações agrárias e, mais amplamente, do modo de produção capitalista, que repercutiram negativamente nas condições de vida, trabalho e saúde do trabalhador rural.
Estas transformações ocorreram tanto no plano da produção (como o aumento e diversificação da produção, expansão da fronteira agrícola, emergência de novas formas de organização do trabalho, generalização do uso de insumos e de máquinas agrícolas, crescente uso das descobertas da engenharia genética, aumento da concentração da propriedade fundiária e da renda), quanto no das relações de trabalho (como a expulsão dos antigos colonos das propriedades agrícolas e a substituição das relações de trabalho como o colonato, meação e parceria por outras estritamente subordinadas ao capital, concomitante à propagação do trabalho assalariado, principalmente temporário). [05]
Sob a égide das relações capitalistas de produção, as culturas agrícolas comerciais, na impossibilidade de subsumirem a produção agrícola ao domínio completo do capital, passaram a recorrer amplamente ao uso dos processos de extensão da jornada de trabalho, intensificação do seu ritmo, pagamento por produção, decréscimo real do valor dos salários e descumprimento de direitos trabalhistas. O rurícola, então, rompeu com o tempo natural e passou a ser regido pelo tempo do capital ou, pelo tempo que é valor. [06]
O imperativo da maior produtividade como forma de manutenção do emprego é resultado de diversos fatores, a saber: aumento da mão-de-obra (por causa da mecanização, aumento do desemprego geral, expansão da fronteira agrícola com redução da agricultura familiar), seleção de trabalhadores com perfis mais adequados à atividade (homens, jovens, dotados de resistência física), contratação geralmente limitada ao período de safra e, principalmente, o pagamento por produção.
O pagamento feito ao trabalhador leva em consideração seu processo de trabalho, que consiste em cortar um retângulo (eito) com largura pré-determinada, em diversas linhas em que é plantada a cana, cujo comprimento é determinado pelo ritmo de trabalho e pela resistência física de cada trabalhador.
A remuneração é apurada a partir da conversão destes metros lineares em toneladas, sendo que o valor do metro de cana do eito depende do seu peso, que por sua vez varia em função de sua qualidade naquele espaço, que também depende de uma série de variáveis (tipo de cana, fertilidade do solo, sombreamento etc.), numa relação entre peso, valor e metragem cortada, não tendo o trabalhador controle sobre o resultado do seu próprio trabalho.
A forma de pagamento atrelada ao esforço físico despendido, leva o cortador de cana a trabalhar até o limite de suas forças numa jornada estafante em que corta, aproximadamente, 8 toneladas/dia (6 toneladas/dia, se mulher). Alguns trabalhadores, entretanto, conseguem atingir a marca das 14 toneladas/dia (10 toneladas/dia, se mulher).
Daí que, consoante o estudo de Neiry Primo Alessi e Vera Lucia Navarro,
"a exposição diária destes trabalhadores a cargas físicas, químicas e biológicas, culmina em uma série de doenças, traumas ou acidentes a elas relacionadas, tais como dermatites, conjuntivites, desidratação, cãibras, dispnéia, infecções respiratórias, oscilações da pressão arterial, ferimentos e outros acidentes (inclusive os de trajeto). Além destas cargas laborais, devemos destacar aquelas de caráter biopsíquicos, que configuram padrões de desgaste manifestos através de dores na coluna vertebral, dores torácicas, lombares, de cabeça e tensão nervosa (stress), além de outros tipos de manifestações psicossomáticas que podem se traduzir, principalmente, por quadros de úlcera, hipertensão e alcoolismo." [07]
Sem prejuízo, estas morbidades, associadas ao trabalho realizado de forma repetitiva e automática, exposição a condições climáticas adversas e longas jornadas, levam o trabalhador a diminuir seu limiar de atenção, ficando exposto a infortúnios, numa empreitada insana em direção à morte.
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consagrou a dignidade da pessoa humana como princípio fundante do Estado Democrático de Direito e um dos pilares estruturais da organização do Estado brasileiro (art. 1º, III).
Anterior e hierarquicamente superior, a dignidade da pessoa humana é mais que um direito fundamental, sendo a razão de existir do próprio Estado e das leis, a viga-mestra que imanta toda a Constituição, projetando-se sobre todo o ordenamento jurídico.
Para Ingo Wolgang Sarlet, a dignidade da pessoa humana consiste na
"qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existentes mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos." [08]
Immanuel Kant atribuiu a condição de valor ao atributo da dignidade humana ao conceber o homem como ser racional, existente como um fim, e não como um meio. Isto em razão de concebê-lo como dotado de um valor intrínseco, próprio da sua essência, superior a qualquer preço, [09] tornando-o impassível de manipulação, conferindo-lhe uma dignidade absoluta, objeto de respeito e proteção [10].
Há uma intima ligação entre o ente dignidade e o ente direitos fundamentais, [11] do que decorre que a dignidade da pessoa humana deve servir como limite e função do Estado e da sociedade, na medida em que ambos devem respeitar (função negativa) e promover (função positiva ou prestacional) a dignidade, manifestações essas sentidas pelo respeito e promoção dos direitos constitucionais da pessoa e do cidadão.
Emblemática a definição de Alexandre de Moraes, para o qual a dignidade da pessoa humana deve ser vista como a harmonização do aspecto histórico (sucessão de conquistas contra o absolutismo, seja pelo Estado ou pelo líder de uma comunidade), normativo (contra a injustiça), filosófico (respeito ao próximo ou a si mesmo, sem necessidade de sanção), direito individual protetivo (em relação ao próprio Estado ou a pessoa individualmente considerada) e como dever fundamental de tratamento igualitário. [12]
A Constituição Federal elenca em seu artigo 6º os direitos sociais, dentre os quais se situa o direito ao trabalho e, no art. 1º, estabelece os valores sociais do trabalho como um de seus fundamentos.
Com efeito, trata-se o trabalho de um dos componentes da condição de dignidade da pessoa. Visa promover o estado de bem viver, assegurando o sustento do trabalhador e de sua família, a saúde, o lazer e o progresso material.
Os direitos sociais, notadamente os relativos ao trabalho, demandam do Poder Público uma obrigação positiva, de atuação concreta, notadamente com a inclusão social do indivíduo, satisfazendo sua necessidade de subsistência, garantindo uma existência material mínima, direito público subjetivo da pessoa humana, em contraposição à obrigação estatal de satisfazer a necessidade ou interesse social ou econômico tutelados pelo Direito.
Não olvidar, ainda, que o art. 23, da Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê que
"toda pessoa que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social".
Contudo, a realidade demonstra, à saciedade, a ínfima valorização social do trabalho braçal e desqualificado dos bóias-frias, considerados mera peça de reposição na visão empresarial. Afiguram-se, destarte, à margem de qualquer prestação positiva por parte do Estado no sentido da efetiva proteção social e da promoção da dignidade humana.
Infere-se que as condições desumanas impostas aos cortadores de cana em seu ambiente de trabalho extrapolam o espaço da produção, na medida em que tolhe do indivíduo o tempo para suas demais atividades, o suporte financeiro para satisfazer suas necessidades e de sua família, e corrói sua saúde. Não bastasse, maculam sua subjetividade, esvaziando suas motivações, auto-estima, auto-imagem e honra, contribuindo para o seu colapso como ser humano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Inserida a cultura canavieira no modo de produção capitalista, impõe-se o uso de objetos, instrumentos e da força de trabalho assalariada em seu potencial máximo, visando a reprodução ampliada do capital. Ademais, por tratar-se apenas de uma etapa de um processo industrial severamente organizado, o trabalho no corte de cana é marcado por um ritmo acelerado, porquanto articulado com a demanda de matéria-prima para o mercado à jusante das indústrias de processamento do açúcar e do álcool, o que exige rigoroso preparo logístico.
Tanto a expansão do capitalismo na agricultura (que resultou na extinção das antigas relações de trabalho de forma a propagar o labor assalariado, que em última instância resulta em maiores exigências dos trabalhadores), como a forma de remuneração paga por produção e que se vale de cálculo complexo realizado pelo departamento técnico das usinas (a partir de diversas variáveis que fogem ao controle do trabalhador), implicam na alta produtividade dos cortadores de cana-de-açúcar, levados a trabalhar até a exaustão.
O trabalho excessivo para aumentar a produtividade, somado às suas características de repetição, monotonia e desgaste, e à péssima infra-estrutura nas lavouras e demais condições insalubres próprias da atividade, redundam na precarização da saúde e vida do obreiro, transpondo, por vezes, o limiar morbidade/mortalidade.
Outrossim, impossibilita o trabalhador de relacionar-se adequadamente com sua família, bem como não assegura a reposição das energias despendidas ao longo da jornada, além de impedir a socialização e a construção de uma identidade político-social que possibilite, inclusive, a mobilização para luta por direitos.
Cumprindo ao Estado garantir independência e autonomia ao ser humano, afastando qualquer atuação que iniba o seu desenvolvimento como pessoa ou imponha condições desumanas de vida, imperiosa a constatação de sua ineficiência para compor eficazmente os conflitos advindos da relação entre capital e trabalho, mostrando-se inapto a afastar o tratamento degradante e desumano dispensado aos cortadores de cana e sua condição de miserabilidade e indignidade.
Necessária, pois, a adoção de uma nova diretriz para as políticas públicas de desenvolvimento econômico e (re)inserção social dos bóias-frias, combinando a efetiva atuação estatal, principalmente fiscalizadora, com a mudança de paradigma das usinas, através do estabelecimento de condições mais dignas de compra da força de trabalho, notadamente com a substituição do pagamento por produção por uma remuneração mínima que garanta a subsistência do cortador de cana, além da substituição do pagamento apurado em toneladas para aquele com base em metros lineares cortados. Insta não olvidar, também, da necessidade de melhoria das condições do ambiente de trabalho.
Somente esta transformação das relações de trabalho na cultura canavieira terá o condão de minguar as excessivas, desumanas e fatais jornadas laborais, de forma a promover a dignidade da pessoa humana destes trabalhadores, atualmente aviltada pela exigência de alta produtividade.
AUTOR:
Marcel Thiago de Oliveira
Advogado e Assessor Jurídico da Câmara Municipal de Rio Claro / Graduado em Ciências Jurídicas e Mestrando em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP
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